quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Louca
(Michellen Marques)

Uma vez, no recreio, comendo um Bis derretido, pensei isso, pela primeira vez: e se eu ficasse louca?
Vi minhas amigas trocando papéis de cartas, vi uns meninos correndo de testa suada, vi uma professora caminhar como alguém que pensava em alguém que ela encontraria no final do dia, vi tudo isso como se não pudesse ter, ver, ser. E se eu ficasse louca.
Que triste para meus pais, que triste para a carteira vazia da escola, que triste para os livros plastificados com a etiqueta que dizia que era eu. Uma estudante, uma garotinha, com família, amigos, presilhas de cabelo, camisas brancas PP com um brasão que trazia um livro e um fogo. Se eu ficasse louca tudo isso seria o quê? Pra onde iriam os materiais e as pessoas e o amor? E se eu ficasse louca? Quem iria me ver babar num canto de um hospital? Existe louco em casa? Mãe ama os loucos? Louco tem amigo? Louco tem livro plastificado? Louco começa e não para mais até acabar? Louco uma vez, louca pra sempre? Converse. Respire. Pense em garotos. Pense em xampus. Vamos. Não fique louca. Mude de assunto. Pense na menina mais bonita do mundo e odeie. Dê nome pra loucura que ela deixa de ser. Sinta dor com nome que assusta menos.
Caia na aula de educação física, rale o joelho, sangre, dói menos. Desembarace os cabelos e sinta que problemas se alisam. Faça o papel do Bis virar um barquinho. Isso. Conte uma piada. Se os outros rirem bastante. Se a sua estranheza puder ser amada. Qualquer coisa menos loucura. Pense naquela música da rádio. Não, você não está triste. Uma fofoca e pessoas em volta. Vá até o banheiro retocar o batom da moranguinho. O professor mais ou menos bonito, por ele. Os outros. Olhe. Os outros. Vamos. Que data mesmo? Da guerra. Que data? Qualquer coisa. Menos louca. O hino. Sujou um pouquinho da meia. Limpinha. Dê nome aos problemas. Problemas com nomes são problemas e não loucuras. Sempre evitando que ela saia. Sempre segurando. Não caia dura no meio do mundo. Não se chacoalhe no meio do pátio.
Não vomite só porque sei lá o que é isso impossível de digerir e nem quero saber. Não abrace sem fim porque é preciso sentir o vento com o peito sozinho. Terrível mas tem banho quente pra distrair. Não espanque, não soque, não chore sangue, não arranque a língua, não grite, não acabe. Siga. Sorria. Mais uma prova. Mais uma festa. Mais um garoto. Sempre um pavor escondido mas nem era nada disso. Sempre uma tristeza abafada mas nem era nada disso. Sempre uma alegria exagerada que ninguém acolhe e o silêncio depois, fazendo curativos na pureza criando cascas. Um dia você será. O quê? Normal. Um dia você será. Normal. Um dia. Enquanto isso, se distraia como a professora que ama, as crianças que trocam papéis de cartas, os garotos que correm. Eles estão se distraindo também e pensando “olha, uma menina comendo Bis”.

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E tu ainda vens me perguntar o que eu acho dos teus textos, Sally? Você não foi minha grande parceira de "composições textuais" no ensino médio a toa!
Grande texto. Escrita suave e tensa ao mesmo tempo.
Fiquei lembrando agora de quando a Katiúscia recebia nossos textos nas aulas dela... hahaha a cara que ela fazia era impagável! Isso é o que dá ter dois adolescentes rebeldes e criativos em uma aula de uma professora toda "meiguinha". hahaha
Parabéns, Sally!
Desculpe, mas tive que postar!! Lindo!!

Música do dia (para a Sally que eu sei que gosta e para minha namorada que eu sei que acha bonitinha essa música):



Tá, eu assumo: até eu achei bonitinha essa música. :$

Um comentário:

  1. Engraçado ler este texto aqui, agora. A alguns dias vi o que poderia ser uma das respostas possiveis para a pergunta do inicio. Vi o que pode acontecer a uma menina, linda, inteligente e "com tudo o que se poderia querer" (se é que isto algum dia existiu). Que na fase onde carteiras de colégio e papéis de carta e "o que vai ser quando crescer" são os principais focos desta mente,descobre que nunca vai ser normal. Não da forma que todos devemos ser. Daquela forma vulgar que temos de poder ser o mais diferente que conseguirmos. De poder ousar, criar, mudar. Ir e vir sem temor. Da forma que qualquer um pode se esforçar ao máximo para não parecer em nada com quem veio antes. Mas somente consigo mesmo. E, de vez em quando, tomar atitudes que ninguém diria que são suas. Bem, esta garota, poderia ser algo que se chamaria de louca a 100 anos atrás. Mas hoje, sua loucura já tinha nome, e por isso passara a ser um problema. Dela, de sua família, do namorado que a amava e de todos que sentiam o mínimo de carinho por aquela garota, que, se não de sorriso fácil, mas sempre muito sincero.
    O problema foi nomeado, catalogado, medicado. Mas, mesmo assim, era pesado demais. Pesado demais por não permitir mais a liberdade da loucura, das escolhas temerárias, da liberdade, de imaginar o futuro sem nenhum constrangimento. Agora haviam regras, haviam barreiras. Enfim, toda uma carga a cumprir para chegar a bendita normalidade nossa de cada dia.
    Quem já viu um baralho de tarot, talvez lembre da carta do louco. Um homem que caminha em direção ao precipício com o olhar voltado para o céu. Em sua roupas coloridas reflete a disposição de sua alma e com uma trouxa sobre o ombro, mostra que esta a caminho de mudanças.
    Menina bonita, que agora, nestas mudanças da vida, que seu caminho esteja correndo onde seus olhos estavam sempre postos. Que a loucura da felicidade possa ter tomado conta de seu coração.
    Siga em frente, que nós cuidamos de tudo por aqui. Com amor.

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